Clarice Lispector em 10 quase poemas

Rebeca Fuks
Rebeca Fuks
Doutora em Estudos da Cultura

Apesar de Clarice Lispector (1920-1977) só ter publicado dois poemas em vida, a sua obra está repleta de passagens poéticas que merecem ser admiradas. Não é difícil encontrar ao longo dos seus romances, crônicas e contos passagens densas onde Clarice reflete sobre a vida, sobre o amor, sobre a identidade e até mesmo sobre o processo da escrita. 

1.

"É difícil perder-se. É tão difícil que provavelmente arrumarei depressa um modo de me achar, mesmo que achar-me seja de novo a mentira de que vivo."

No romance A paixão segundo G.H. é possível encontrar uma coleção de parágrafos poéticos, o trecho acima nos fala sobre como é complexo lidar com a sensação de estar perdido no mundo, como é desesperador se sentir sem respostas, ainda que provisórias.

A dificuldade de se saber desorientado é tão grande que, muitas vezes, é mais fácil inventar uma mentira só para se perceber ancorado novamente. 

Apesar de ter consciência de ser um caminho doloroso, Clarice convida o leitor a se perder e o estimula a se aventurar nessa sensação de desamparo numa procura pelo autoconhecimento. 

O livro mais conhecido de Clarice Lispector, A paixão segundo G.H., foi publicado em 1964 e se tornou uma das maiores obras do modernismo brasileiro. Ele foi lançado depois de Clarice ficar sete anos sem publicar nenhum livro.

2.

"Presa, presa. Onde está a imaginação? Ando sobre trilhos invisíveis. Prisão, liberdade. São essas as palavras que me ocorrem. No entanto não são as verdadeiras, únicas e insubstituíveis, sinto-o. Liberdade é pouco. O que desejo ainda não tem nome. Sou pois um brinquedo a quem dão corda e que terminada esta não encontrará vida própria, mais profunda. Procurar tranquilamente admitir que talvez só a encontre se for buscá-la nas fontes pequenas. Ou senão morrerei de sede."

O trecho retirado do livro Perto do coração selvagem fala sobre a frequente sensação de aprisionamento que Joana, a protagonista, sente, e sobre a sua vontade de se libertar. A obra de Clarice trata justamente das pequenas e grandes descobertas dessa mulher e sobre o seu percurso de amadurecimento. 

Uma das questões mais importantes para Joana é justamente essa busca pela liberdade, a tentativa de encontrar a sua voz pessoal, o seu lugar no mundo e o seu desejo de se emancipar, se sentindo independente, autônoma. 

Lançado em 1943, Perto do coração selvagem acompanha a personagem Joana desde que era pequena até a maturidade. A preocupação com o mundo interior, com a subjetividade, foi o tema deste livro de estreia de Clarice Lispector. 

A obra inaugural de Clarice foi lançada pelo jornal A noite, onde trabalhava, quando a jovem escritora tinha apenas 23 anos e ainda estudava direito. Por ser o seu primeiro trabalho publicado, quando Clarice era ainda muito nova, uma série de críticos levantaram problemas sobre a obra e a própria escritora reconheceu que tateava no escuro a fim de encontrar a sua própria linguagem. 

De toda forma, o ano de lançamento de Perto do coração selvagem - 1943 - foi muito especial para a escritora, que recebeu, em janeiro, a naturalização brasileira assinada por Getúlio Vargas. No mesmo ano Clarice terminou a faculdade de Direito e se casou com o colega de curso Maury Gurgel Valente. Para fechar com chave de ouro o ano, o livro recém publicado Perto do coração selvagem recebeu o Prêmio Graça Aranha de Melhor Romance do Ano. 

3.

"Se tivesse a tolice de se perguntar quem sou eu? Cairia estatelada em cheio no chão. É que quem sou eu? Provoca necessidade. E como satisfazer a necessidade? Quem se indaga é incompleto."

A passagem poética foi retirada do romance A hora da estrela (1977), que conta o percurso de Macabéa, e se refere ao nosso desejo humano de conhecermos mais sobre nós mesmos.

O trecho é um convite para mergulharmos na nossa subjetividade, ainda que a resposta a essas perguntas densas seja perigosa e apresente um caminho complicado. Clarice fala aqui sobre o autoconhecimento e, ao mesmo tempo, sobre a dificuldade de empreendermos essa jornada rumo ao desconhecido

A hora da estrela foi o último livro lançado pela autora, que logo a seguir à publicação foi internada para tratar um câncer no ovário que veio a tirar a sua vida em 9 de dezembro de 1977, na véspera do seu aniversário, aos 56 anos. 

4.

"E à beira de sua mudez, estava o mundo. Essa coisa iminente e inalcançável. Seu coração faminto dominou desajeitado o vazio."

A frase presente no princípio do romance A maçã no escuro fala sobre a pulsão do desejo, a vontade que muitas vezes temos de devorar o mundo. Essa consciência da pequenez individual diante da imensidão do mundo aparece muitas vezes na obra de Clarice Lispector. 

O trecho acima fala sobre a individualidade e sobre a consciência da pulsão do desejo.

A maçã no escuro foi publicado em 1961 e carrega muito do perfil existencialista da escritora, que cria grande parte das suas obras em torno da memória e da busca pelo novo (um novo que pode ser tanto interior quanto exterior). Ao mesmo tempo que procura por essas novas formas de estar, Clarice empreende uma viagem, um mergulho na nossa gênese, na nossa origem. 

Os especialistas consideram A maçã no escuro e A paixão segundo G.H. as duas grandes obras mais radicais de Clarice. A própria escritora na ocasião da publicação declarou ter consciência desse ser um dos seus trabalhos mais bem realizados: "É o melhor. Não posso defini-lo, como é, como não é posso apenas dizer que é muito mais bem construído que os anteriores."

5.

"Ainda era cedo para acender as lâmpadas, o que pelo menos precipitaria uma noite. A noite que não vinha, não vinha, não vinha, que era impossível. E o seu amor que agora era impossível que era seco como a febre de quem não transpira era amor sem ópio nem morfina. E "eu te amo" era uma farpa que não se podia tirar com uma pinça. Farpa incrustada na parte mais grossa da sola do pé."

A passagem do romance Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres (1969) fala sobre o sentimento do amor de uma forma extremamente visual, usando a metáfora da farpa no pé.

Em diversos momentos Clarice Lispector usa uma situação do dia-a-dia - como a incomoda farpa que perfura a pele - para explicar um sentimento abstrato e, muitas vezes, não facilmente nomeável. 

Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres foi um dos romances publicados a meio da carreira de Clarice, já mais para a sua fase final. A obra recebeu o prêmio Golfinho de Ouro, do Museu da Imagem e do Som do Rio de Janeiro.

6.

"Sua precaução reduzia-se a tomar cuidado na hora perigosa da tarde, quando a casa estava vazia sem precisar mais dela, o sol alto, cada membro da família distribuído nas suas funções. Olhando os móveis limpos, seu coração se apertava um pouco em espanto. Mas na sua vida não havia lugar para que sentisse ternura pelo seu espanto ela o abafava com a mesma habilidade que as lides em casa lhe haviam transmitido."

No conto Amor, publicado no livro Laços de família, conhecemos a vida da personagem Ana, uma dona de casa que faz uma intensa viagem pelo seu próprio interior. Ana é uma mulher comum, mergulhada nos seus afazeres domésticos, mãe, esposa, que tem a cabeça ocupada quase o tempo inteiro com a sua rotina familiar. 

Mas uma hora a sua inquietação subjetiva vem à tona, e ela começa a refletir sobre a vida e sobre o seu lugar no mundo

O trecho nos convida a pensar sobre a nossa vida adulta, sobre a felicidade, sobre como o cotidiano repetitivo engole a nossa subjetividade. 

Em Amor, lemos muito da chamada epifania presente na escrita de Clarice Lispector - aquele momento-chave inesperado onde somos convocados a repensarmos o significado que as coisas têm para nós. 

O livro Laços de família, lançado em 1960, recebeu o prêmio Jabuti.

7.

"De manhã na cozinha sobre a mesa vejo o ovo. Olho o ovo com um só olhar. Imediatamente percebo que não se pode estar vendo um ovo. Ver o ovo nunca se mantêm no presente: mal vejo um ovo e já se torna ter visto o ovo há três milênios. No próprio instante de se ver o ovo ele é a lembrança de um ovo. Só vê o ovo quem já o tiver visto."

O misterioso conto O ovo ou a galinha, presente no livro Felicidade Clandestina (1971) tem uma pegada filosófica e convida o leitor a pensar sobre a origem do mundo e sobre a linguagem

O conto, perturbador, começa falando sobre um objeto pacífico, que todos nós conhecemos - um ovo, que frequentemente temos em casa - e logo começa a problematizar a nossa própria existência e o nosso olhar sobre o mundo. 

Clarice questiona aqui, e em uma série de outras obras que escreveu, a nossa forma de ver o mundo, a maneira como o nosso olhar já está contaminado com o que vimos no passado e, de que forma, essa memória interfere na forma como lemos o presente e o futuro. 

Em Felicidade Clandestina, Clarice Lispector reuniu uma série de histórias passadas no Rio de Janeiro e no Recife entre os anos cinquenta e sessenta. Essa coletânea apresenta fortes traços autobiográficos. Em grande parte das narrativas curtas Clarice bebeu da sua própria história para compor a criação.

8.

"Até cortar os próprios defeitos pode ser perigoso nunca se sabe qual é o defeito que sustenta nosso edifício inteiro. Nem sei como lhe explicar, querida irmã, minha alma. Mas o que eu queria dizer é que a gente é muito preciosa, e que é somente até certo ponto que a gente pode desistir de si própria e se dar aos outros e às circunstâncias. Depois que uma pessoa perder o respeito de si mesma e o respeito de suas próprias necessidades depois disso fica-se um pouco um trapo."

A passagem foi retirada de uma carta escrita por Clarice Lispector para a irmã Tânia Lispector Kaufmann (1915-2007), no dia 6 de janeiro de 1948. 

Por conta da carreira do marido, Maury Gurgel Valente, que era diplomata, Clarice passou grande parte da vida morando fora do Brasil, e era através de cartas que se correspondia com os familiares e amigos queridos.

No trecho acima, Clarice disserta sobre a importância de nos autoconhecermos, de sabermos dos nossos próprios defeitos e das nossas qualidades. Ela fala também sobre a necessidade de nos respeitarmos, de entendermos as nossas carências, aquilo que toleramos, até para podermos lidar com quem está ao nosso redor. 

Em um tom de conselho, na carta a autora sublinha que não devemos nunca nos entregarmos às outras pessoas de forma a, no final, nos sentirmos esvaziados. 

No mesmo ano que escreveu a carta, no dia 10 de setembro, nasceu o seu primeiro filho, Pedro.

9.

"Que ninguém se engane, só consigo a simplicidade através de muito trabalho. Enquanto eu tiver perguntas e não houver resposta continuarei a escrever."

O trecho escrito por Rodrigo, o narrador fictício do livro A hora da estrela, fala sobre a dificuldade de criar um livro, de escrever de maneira simples e, ao mesmo tempo, densa. 

Nessa passagem ele também reflete sobre a motivação para seguir em frente, criando, apesar de todo trabalho e cansaço que esse movimento de escrita implica. É nas perguntas que Rodrigo encontra o seu combustível para produzir. 

O contador da história em A hora da estrela em diversos momentos da obra fala sobre as adversidades de ser escritor, sobre a luta diária com as palavras.

Clarice Lispector, assim como o suposto escritor Rodrigo, viveu na pele essa batalha para encontrar a sua voz literária. A autora publicou, ao longo da vida, uma série de romances, crônicas, contos, ensaios, livros de literatura infantil, além de ter sido jornalista, ter assinado colunas literárias e ter feito traduções. Toda a sua vida foi dedicada à escrita.

10.

"Depois que eu acabar de falar, você me desconhecerá ainda mais: é sempre assim que acontece quando a gente se revela, os outros começam a nos desconhecer."

Retirado do romance A maçã no escuro (1961), o trecho aborda a relação que temos com nós mesmos e também com os outros. Por mais que estimule essa autodescoberta, essa necessidade de se conhecer cada vez mais, a autora reconhece que esse processo traz consequências para aqueles que estão à nossa volta. 

Quanto mais descobrimos novas facetas nossas, mais aqueles que estão ao redor estranham essa nossa nova identidade. Esse mergulho é, assim, duplamente perigoso, porque interfere na forma como nós nos percebemos, mas também modifica as relações que estabelecemos com as pessoas mais próximas. 

Aproveite também para conhecer a biografia completa de Clarice Lispector.

Rebeca Fuks
Rebeca Fuks
Formada em Letras pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (2010), mestre em Literatura pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (2013) e doutora em Estudos de Cultura pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro e pela Universidade Católica Portuguesa de Lisboa (2018).